A maioria das pessoas em sã consciência não defende o aborto. Entretanto, a questão em debate neste momento é outra e muitas pessoas acabam se equivocando por ouvir falar no projeto de lei antiaborto e não se aprofundar um pouco mais no assunto.
É preciso deixar claro que independentemente de questões religiosas ou de outras naturezas, o aborto no nosso país só é permitido em casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). Tudo previsto na Constituição. Atualmente, não há no Código Penal um prazo máximo para o aborto legal.
Agora, chega ao Congresso Nacional, um projeto de lei que vira o país de ponta-cabeça, provoca um debate intenso e divide opiniões, muitas delas sem uma análise maior, de corte mais profundo. Quando se diz ser contra a esse PL não se está defendendo o aborto. Estamos na verdade contrários a uma proposta que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos em que o procedimento é permitido por lei.
Isto significa que se o projeto for aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão da mulher, de seis a 20 anos em todos esses casos e também, pasmem, no caso de gravidez resultante de estupro. A punição é a mesma prevista para o homicídio e pode fazer com que a vítima de estupro tenha uma pena maior que a de seu agressor.
Como encontrar racionalidade num projeto que penaliza a vítima? Como compreender que a religiosidade se sobreponha num assunto tão complexo, quando na realidade a preocupação deveria ser com a saúde da mulher e os cuidados que merece? Como entender a punição para meninas que são vítimas de estupro, muitas vezes dentro do próprio meio familiar?
Penso que este projeto é temerário sob vários aspectos e um deles diz respeito à proibição imposta porque aí sim o aborto vai continuar existindo e o que é pior, de forma clandestina, o que colocará muito mais em risco a vida da mulher.
Não é sem embasamento jurídico que a OAB considera o projeto inconstitucional e ilegal. Não é sem embasamento religioso que pastores se unem contra essa proposta. Não é sem conhecimento que parlamentares desistem do apoio. Não é sem o devido saber que o texto perde força.
Deixo claro que o meu posicionamento é contra o aborto, mas a favor das medidas vigentes, previstas na Constituição. Temos que levar em consideração e avaliar todos esses pontos, sem incluir o aspecto religioso, sem instigar essa relação exacerbada que não leva a lugar nenhum, a não ser cegar as pessoas para colocarem a religião à frente das razões da sociedade, do desenvolvimento social. Ninguém pode ser aniquilado do direito de liberdade no seu modo de entender.
Cabe destacar que os crimes sexuais contra crianças e adolescentes representam uma das mais graves violações de direitos humanos no Brasil. Lidar com essa questão demanda tempo e envolve múltiplos desafios. Desafios estes que deveriam estar no foco, ao invés de estarmos envolvidos com questões que se contradizem, transferem culpas e penalizam de forma cruel as vítimas.
Só em 2024, foram registradas 11.692 denúncias relacionadas à violência sexual desse público no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde, dados mostram que, no nosso país, 320 crianças e adolescentes são exploradas sexualmente a cada 24 horas. O número pode ser ainda maior, já que apenas sete em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras. Os propositores da pauta desconhecem a realidade em que meninas e suas famílias enfrentam para garantir o direito ao aborto legal e seguro.
A missão do Congresso Nacional deve ser sempre pela preservação da verdade, através de um diálogo aberto, honesto e respeitoso, sem indução a crenças religiosas ou a qualquer tipo de preconceito. Os direitos conquistados pelas mulheres não podem se render a retrocessos.
A baixa taxa de condenação dos perpetradores e agora a proposta da pena para as mulheres que realizarem aborto legal após 22 semanas de gestação, ser maior que a desses monstros, contribuem para a perpetuação da impunidade. Lamentável. Simplesmente, lamentável.